Quando a autonomia decisória se torna um abuso de Direito.
- Dra. Carolina de Vargas Marques
- 13 de fev.
- 3 min de leitura
Quando tratamos do direito à vida, falamos de uma prerrogativa extremamente complexa que cabe a todo ser humano, sobretudo aos tutelados pela Constituição da República Federativa do Brasil.
Acontece que o direito à vida não consiste simplesmente no direito a estar vivo. Este é o conceito de vida biológica – ter vida pulsante, que pode ser constatada por alguns exames médicos. Mas parte significativa dos juristas, e aqui, como diria Nelson Rodrigues, “não me incluo por cortesia”, entende que o direito à vida tem semântica biográfica, isto é, compreende tudo aquilo que faz alguém ser o que é e, por isso, alcança também os direitos à dignidade, à liberdade, os direitos da personalidade.
No cenário da bioética, em que tanto se fala do Direito à Vida, o direito à autonomia se faz fundamental para a manutenção da dignidade da pessoa humana, pois que uma pessoa só terá direito à sua biografia se puder escolher livremente como seu corpo e sua mente serão tratados.
A autonomia, aqui, é entendida como o agir segundo sua própria capacidade de decidir por si, segundo suas próprias razões, atento à realidade psíquica do indivíduo, livre tanto quanto possível de influências externas.
Beauchamp e Childress, notáveis autores da obra Princípios da Ética Biomédica, ressaltam a primordialidade do respeito à autodeterminação, ponderando que pacientes somente terão este direito verdadeiramente acatado quando munidos das ferramentas aptas a capacitá-los ao exercício de uma escolha genuinamente esclarecida.
No Direito Médico, este postulado foi incorporado pelo Código de Ética Médica em diversos princípios e deveres, que atribuem ao médico a responsabilidade por trazer ao paciente o entendimento pleno sobre aspectos técnicos de sua patologia e a essencialidade de tratamentos propostos, por meio daquilo a que chamamos processo informacional.
Importante comentar, no entanto, que não há no ordenamento jurídico nenhum direito absoluto, nem mesmo o direito à vida, pois que o Direito como conhecemos é alicerçado no juízo de que o direito de um tem limite no direito do outro.
Assim, por mais que a um paciente, enquanto cidadão, caiba a autonomia decisória sobre seu corpo, sua saúde e sua vida, este direito poderá, sim, ser limitado em alguns casos, notadamente aqueles que envolvam direitos de terceiros ou absurdos jurídicos – circunstâncias a que chamamos abuso de direito.
A recusa terapêutica, por exemplo, sempre foi um cenário beligerante em que se agridem a autonomia técnica que é garantida ao médico no exercício da profissão e a autonomia decisória do paciente – um impasse que deve ser dirimido pela ponderação de interesses, isto é, uma análise minuciosa e humanista do caso concreto de modo a verificar qual lado deverá imperar.
É certo que a harmonização entre as autonomias pode se revelar em múltiplos aspectos, que sobrevêm intrinsecamente das particularidades de cada contexto.
A título de exemplo, dizemos que se, por um lado, o Supremo Tribunal Federal já entendeu que a recusa à transfusão de sangue por testemunha de jeová deve ser acatada, ainda que coloque em risco a vida do paciente, é entendimento do Conselho de Medicina que a recusa da parturiente em se submeter ao parto cesáreo, havendo riscos à sua vida e saúde ou do bebê, constitui abuso de direito e deve ser sobreposta pela autonomia técnica do médico.
As circunstâncias são numerosas e complexas e, na mesma medida, é o Direito. É também o exercício da medicina, que requer visceralmente a escuta ativa, o olhar atento e o agir cuidadoso, com o paciente e consigo.
Diante de escolhas difíceis, convém a consulta a advogado especialista na área, de modo a buscar o caminho mais prudente e juridicamente seguro.
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