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Gaslighting: a medicina pede presença.

  • Foto do escritor: Dra. Carolina de Vargas Marques
    Dra. Carolina de Vargas Marques
  • 8 de abr.
  • 3 min de leitura

Outro dia a Folha de São Paulo divulgou um artigo suscitando o gaslighting médico, que me convidou a uma reflexão sobre como os avanços tecnológicos têm impactado profundamente na forma como vivenciamos as nossas relações pessoais e profissionais.


Em uma breve pesquisa no Google, descobri que o termo ‘gaslighting’ foi criado a partir de um filme da década de 40 sobre manipulação emocional, o que justifica que hoje seja empregado para se referir a uma forma de manipulação psicológica em que um indivíduo leva outro a duvidar de si, de suas convicções, da realidade psíquica que sustenta com base no seu repertório de saberes e experiências.


Na área da saúde, por sua vez, tem se traduzido em profissionais que, por diversas razões, que incluem a convicção de prestar um serviço assertivo, questionam os sintomas, as manifestações, as queixas do paciente, atribuindo-lhes apressadamente o caráter de resultado de uma instabilidade emocional, um transtorno psíquico, ação hormonal... qualquer rótulo que, desconsiderando o valor da voz do outro, justificaria uma queixa aparentemente irreal.


Enquanto advogada, tenho como prerrogativa dar voz a quem não tem e, com isso, insisto que, muito embora a psicossomatização seja real – e temos inúmeros estudos recentes afirmando-o categoricamente –, não investigar ainda que minimamente a origem da queixa do paciente importa em uma inquestionável e absolutamente cruel forma de negligência médica, que poderá, sim, ser penalizada tanto na esfera judicial quanto na esfera ético-profissional.


Isso porque eventual sofrimento emocional ou psíquico, ainda que real, não pode ser capaz de afastar dos cuidados médicos o sofrimento que se manifesta de forma física, que, neste caso, carecerá de atenção redobrada, seguindo a máxima de que a medicina é a cura pelo cuidado, e não pelo remédio.


O artigo da Folha diz precipuamente da violência de gênero que tem sua manifestação mais comum na obstetrícia – e a história recente está infestada de exemplos que demonstram como a instabilidade hormonal tem equivocadamente justificado a negligência médica, culminando em finais trágicos que poderiam ter sido evitados com facilidade.


Também tem chamado a atenção a área da neuropediatria, em que o número exponencialmente crescente de diagnósticos de TEA, TDAH e TOD têm tolhido das crianças a capacidade de serem inventivos, ativos e verdadeiramente livres, impondo-lhe apressadamente rótulos e medicações que impactarão significativamente em seu desenvolvimento como um todo.


Eu, particularmente, não deixo de pensar que talvez a área que mais urja por atenção em se tratando de manipulação profissional seja a saúde mental, pois que o rótulo da loucura institucionaliza tratamentos inadequados e negligências em desfavor da pessoa em sofrimento mental, que, por suas próprias limitações, tem sua voz absolutamente silenciada.


Qualquer que seja a área em que o gaslighting médico se manifeste, certo é que se trata de uma conduta terrivelmente reprovável, ilegal e antiética; que pode ser evitada com uma prática preventiva muitíssimo complexa e revolucionária: a escuta.


Não é por acaso que a primeira etapa de um atendimento médico seja a anamnese e não o exame físico.


Do ponto de vista técnico do Direito Médico, somente uma anamnese bem feita, fundamentada em escuta ativa e observação atenta, será capaz de traçar com precisão boas hipóteses diagnósticas e consequentes tratamentos – ou encaminhamentos – assertivos; e a negligência desta etapa pode trazer prejuízos catastróficos ao profissional da saúde, que envolvem processos por erro médico, perda de uma chance e mesmo negligência informacional.


O apelo hiperprodutivista do nosso tempo tem clamado por atendimentos médicos práticos, otimizados e rápidos e, com isso, atrofiado a capacidade dos profissionais – e aqui, nas palavras de Nietzsche, não me incluo por cortesia – para a escuta, mas a ética insiste em sobreviver às constantes mutações da sociedade e nos pede diariamente pela presença integral nas relações humanas, inclusive profissionais.


Aquele que pretender exercer a medicina de forma ética e segura precisará acostumar-se com a ideia de remar contra a maré da otimização e perceber que intrínseca à excelência é a presença calma e atenta.


Insisto: a cura – do corpo, da alma e da sociedade – começa pela escuta.

 
 
 

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